A liberdade espiritual e os evangélicos



Por Arthur Virmond de Lacerda Neto

A liberdade espiritual ou separação do Estado, das igrejas, ou laicização do Estado, foi instituída em 1890, por influência dos Positivistas, sob o valor da liberdade de pensamento, o que inclui a de crença e de descrença. Graças a ela, o Brasil deixou de adotar religião obrigatória, o catolicismo. Hoje, contudo, graças à liberdade espiritual, certos indivíduos e certas igrejas aproveitam-se da ingenuidade, da credulidade, da ignorância das massas, para, mistificando-as com a religião, locupletarem-se às custas delas, ascenderem politicamente, aspirarem à dominação gradual da sociedade segundo os dogmas da teologia bíblica.

Não foi para isto que os Positivistas introduziram a liberdade espiritual, em 1890; não foi para isto que os próceres da república (Benjamin, Demétrio Ribeiro, Rui, Teixeira Mendes, Deodoro, Floriano e outros) separaram a igreja do estado e nos livraram da obrigatoriedade do catolicismo. A liberdade espiritual, princípio cardeal do Positivismo e da república, tal como foi instituída em 1889, destinava-se a propiciar a liberdade de consciência o que, concretamente, significa a liberdade de o indivíduo, livremente, consoante o seu entendimento pessoal e fora de imposições do Estado, adotar algum credo, abster-se de fazê-lo e examiná-lo. A liberdade espiritual destina-se a assegurar, no indivíduo, o âmbito da sua consciência como região à salvo de interferências externas; ela visa a garantir, a cada pessoa, a sua autonomia de pensamento.

Ela não foi instituída para que alguns adquirissem o direito de mistificar e de explorar as massas e de pregar os valores mais retrógrados, com os argumentos mais ignorantes e se constituírem, como vai acontecendo, em força política, cujo resultado será o da teocratização do Brasil, pela constituição do que eles chamam de “jesuscracia”. Ela não foi instituída para que certos indivíduos possam organizar-se em instituições de fito realmente financeiro, embora aparentemente religiosa. Ela não se destina a servir de disfarce da exploração econômica da população influenciável, ao locupletamento de pregadores habilidosos na sua capacidade de emocionar o seu público, de envolvê-lo com alegadas verdades sobrenaturais e, sobretudo, na sua astúcia de persuadí-lo propiciar-lhes transferências financeiras e patrimoniais.

Tampouco ela foi instituída para que algum grupo religioso possa pregar o que constitui ilegalidade; concretamente, ela não pode ser invocada pelos evangélicos como justificativa de pregações  racistas e homofóbicas, porque a Bíblia, interpretada literal ou conotativamente, permite  conclusões de direta discriminação contra os negros e de explícita condenação da homossexualidade e que, portanto, incutem nos seus fiéis sentimentos de preconceito, desprezo e ódio por uma parte da população.  Ninguém se acha acima da lei nem fora dela; a liberdade religiosa não visa a assegurar, a nenhuma religião, a possibilidade de, direta ou indiretamente,  cometer  crime de preconceito racial nem incitar  ao desprezo e ao ódio por outrem. É moralmente repreensível e socialmente indesejável que, seja quem for, propagandeie conceitos que promovem a hostilidade a dadas parcelas da população, o que se agrava quando se trata de caciques carismáticos, dotados de grande poder de persuasão, sobre vasta número de pessoas, ou seja, de pastores cuja palavra passa por expressão das verdades chamadas de divinas, aceitas por milhares de indivíduos crédulos e facilmente influenciáveis.

O recinto das igrejas de quaisquer cultos e a palavra dos respectivos propagadores não podem representar nem lugares nem pessoas imunes à legislação pátria: não há lugares nem pessoas acima da lei. A pregação racista é criminosa dentro das igrejas, como fora delas, da parte de pastores, como da de qualquer outro cidadão. O incitamento ao desprezo pelos homossexuais é odiosa dentro das igrejas, como fora delas, da parte de pastores, como da de qualquer outro cidadão. 

O retrocesso, de país esclarecido e de liberdades, para teocracia intolerante, em que a vida das pessoas seja regulada pelo prevalecimento dos dogmas religiosos ou pela adaptação das liberdades às formas religiosas, é, sim, infelizmente, possível. A forma de travá-lo consiste em conscientizar a pessoas esclarecidas de que tal nos ameaça e a sociedade organizar-se como força cultural e política de afirmação dos valores de humanidade, de liberdade, de laiciedade, de espírito de ciência, em oposição à teologia e à teologização dos costumes e das mentalidades.

Os teológicos acham-se organizados e já constituem força política, dotada de 20 milhões de votos cativos. É urgente que a parcela ateológica, Positivista, livre-pensadora, humanista e atéia da sociedade se organize e passe a militar no domínio da cultura humanista e da política da laicidade. É imperioso barrar o avanço do retrocesso e afirmar os valores da modernidade. É imperioso, também, restaurar-se o sentido legítimo da liberdade espiritual, como possibilidade de cada um aderir a dado credo ou deixar de fazê-lo, se e quando entender fazê-lo, e não como indústria, altamente rentável, de exploração das carências materiais e culturais das camadas incultas da nossa população e de indivíduos crédulos.

OBS: Texto extraído do blogue do autor em https://arthurlacerda.wordpress.com/2013/04/27/a-liberdade-espiritual-e-os-evangelicos/

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