Escravidão que ainda não terminou




Há exatos 128 anos atrás, era sancionada pela regente Dona Isabel a Lei Imperial n.º 3.353, cujo projeto foi de autoria do então Ministro dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, o Conselheiro Rodrigo Augusto da Silva (1833 - 1889). Conhecida também como a Lei Áurea, tal norma formalizou a extinção do trabalho escravo no país, representando a conquista de uma heroica luta pelo abolicionismo, a qual marcou a segunda metade do século XIX.

Embora sem prever qualquer indenização aos fazendeiros. a referida lei de apenas dois artigos tão pouco foi capaz de promover uma justa inclusão social dos quase um milhão de ex-escravos que estariam deixando para trás as senzalas. Estes sofreram consequências muito piores do que a desorganização das lavouras brasileiras. Aliás, nos próprios debates ocorridos no Senado brasileiro, Paulino de Souza chamou a atenção de seus pares para o abandono em que ficariam os libertos em situação de desvantagem:

"É desumana [a lei aprovada] porque deixa expostos à miséria e a morte, os inválidos, os enfermos e os velhos, os órfãos e crianças abandonadas da raça que quer proteger, até hoje nas fazendas a cargos dos proprietários, que hoje arruinados e abandonados pelos trabalhadores válidos, não poderão manter aqueles infelizes, por maiores que sejam os impulsos de uma caridade que é conhecida e admirada por todos os que frequentam o interior do país."

De fato, muitos dos ex-escravos, ao debandarem das fazendas de café, foram tentar a vida nas cidades. Entretanto, ao entrarem no ambiente urbano, encontraram uma liberdade relativa, visto que continuaram sofrendo os condicionamentos causados pelas desigualdades sociais. Pois, além da discriminação em razão da raça e da cor, encontravam-se reféns das necessidades mais básicas como alimentação, moradia, vestimentas, remédios, etc. Logo, tendo em vista a fragilidade do sistema trabalhista da época, caíram numa espécie de escravidão contratual ainda que passassem a receber salários.

Mesmo na atualidade, tenho minhas dúvidas se o trabalhador comum é verdadeiramente livre. Hoje podemos ter leis e instituições que protegem as relações trabalhistas, mas, justamente devido aos condicionamentos existentes, homens e mulheres precisam vender sua força laboral por valores nada dignos. Recebendo baixos salários e tendo que suportar um custo de vida altíssimo, poucos conseguem superar as dificuldades enfrentadas e alcançar um nível maior de liberdade econômica. Só mesmo uma minoria entre os pobres é que consegue vencer os obstáculos pelas vias do estudo e/ou do empreendedorismo.

Entretanto, não acho que a escravidão exista apenas quanto ao trabalho explorado injustamente. Muitas vezes nos tornamos escravos por causa das próprias compulsões e pensamentos quando os alimentamos dentro de nós mesmos. Por exemplo, nas situações em que o homem submete a sua mente a temores irracionais, ou se torna um viciado em qualquer droga, ou ainda passa a fazer do acúmulo de riquezas um fim em si próprio. E aí eu me lembro da célebre frase atribuída a Jesus de Nazaré no 4º Evangelho da Bíblia: "Em verdade, em verdade vos digo que todo aquele que comete pecado é servo do pecado" (João 8:34; ARA). Ou, conforme a Nova Versão Internacional das Escrituras Sagradas, seria escravo o que "vive pecando".

Sem qualquer pretensão de fazer uma análise religiosa desta citação bíblica, apenas chamo a atenção para o fato de que o primeiro passo para a liberdade é o ser humano não se deixar escravizar por nada. Inclusive pela sua religiosidade! E então ressalto a importância da educação em todos os seus aspectos a fim de que as nossas gerações futuras consigam caminhar com maior autonomia. Aliás, foi por falta de assimilação do ensino que somente os filhos dos israelitas libertos por Moisés da escravidão egípcia conseguiram conquistar o território de Canaã.

Ainda que a História não deva ser compreendida pela partícula "se", logicamente que a trajetória dos escravos libertos por D. Isabel teria sido outra caso o governo imperial primeiramente promovesse um programa de alfabetização nas senzalas juntamente com cursos de capacitação para o trabalho. Assim, mesmo que eles se deparassem com os condicionamentos que influenciam as relações empregatícias, por certo teriam uma melhor sorte. Só que o passado, que é imutável, está aí para nos iluminar os caminhos a fim de que consigamos prosseguir todos juntos rumo ao verdadeiro ideal da liberdade, o qual é indissociável da igualdade e da fraternidade.

Que nos tornemos um povo realmente livre!

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