Dialogando com a diversidade familiar do século XXI




O mês de maio costuma ser uma época dedicada a pregações sobre a família nas igrejas cristãs. Durante os cultos dominicais, os pastores ministram mensagens sobre casamento e a relação entre pais e filhos, quase sempre encorajando o dever de submissão aos genitores bem como da esposa ao marido. Repete-se, assim, conhecidas passagens bíblicas entre as quais versículos das epístolas paulinas. Porém, observo que poucas vezes esse discurso é atualizado e, não raramente, os púlpitos de determinadas congregações são mal utilizados para incitar repressão e ataques homofóbicos aos gays por estes buscarem hoje em dia a conjugalidade bem como adotarem crianças.

Verdade seja dita que a família deste século XXI já não é mais a mesma de cinco décadas atrás. Se, nos anos 60, ela foi se tornando mais nuclear do que estendida, devido às migrações e ao êxodo rural, vive-se na atualidade uma situação bem diversificada em que até esse núcleo está se modificando. Mudanças que acabam sendo irreversíveis dependendo do caso.

Se tivermos como foco as crianças, veremos que grande parte delas já não mora com a mamãe e com o papai. Devido às instabilidades dos relacionamentos, muitos pequeninos vivem apenas com suas mães, ou com a mãe e a avó, ou somente com os avós, ou ainda com qualquer outro parente. Ganhar um neto quase sempre significa que a mulher corre o risco de ter uma segunda maternidade.

Por outro lado, quantas dessas crianças não têm outros irmãos e irmãs mas que não são filhos do mesmo pai ou da mesma mãe? E, na prática, elas acabam convivendo com os filhos que são só do companheiro da mãe ou da nova mulher do pai, frutos de relacionamentos anteriores que não deram certo. Coisas que foram motivo de terríveis preconceitos e recalques dentro da nossa sociedade, permanecendo agora de maneira mais velada.

É fato que os pastores precisam estar prontos para ministrar a todos os tipos de famílias de uma maneira inclusiva sem considerarem a diversidade nas relações como uma aberração. Deve-se ter em mente que existem variadas formas de se proporcionar cuidado e proteção às pessoas, o que pode ocorrer muitas das vezes sem existir qualquer vínculo biológico como acontece na adoção. Algo que para a cabeça da maioria dos cristãos torna-se inadmissível quando os pais adotivos são dois homens ou duas mulheres vivendo uma relação homoafetiva.

Assim, penso que a Igreja precisa rever o seu discurso quando tratar da família cuja ideia não pode ficar restrita a um casamento formal, monogâmico e reprodutivo. Pois mesmo que tenhamos o desejo de valorizar o padrão bíblico, segundo o qual "deixa o homem pai e mãe e se une à sua mulher, tornando-se os dois uma só carne" (Gn 2:24), não podemos fechar os olhos para a realidade transformada em nossa volta. Do contrário, o discurso pode acabar virando uma coisa estéril e até excludente quando alcançar os ouvidos de quem não se encaixa no modelo religioso.

Creio que Jesus veio justamente propor uma nova concepção de família que é bem mais ampla e diferente do tradicionalmente conhecido. Seu desejo sempre foi que, através da Igreja, fizéssemos uma multidão de irmãos, irmãs, pais, mães e filhos. Por isso o Mestre recebeu a todos (em especial os marginalizados da sociedade) e chegou a enfrentar difíceis conflitos com a sua família biológica de Nazaré, sendo incompreendido pelos fariseus porque aceitava incondicionalmente o pecador. E, no processo de construção do Reino, ele previu que os novos valores iriam causar divisões nas casas.

Ora, será que, se levássemos o ensino de Jesus a sério, novos hipócritas religiosos não mostrariam suas caras em nosso meio? Estamos mesmo prontos para convidar uma prostituta afim de que ela venha a conviver com nossas famílias sem levantarmos qualquer barreira preconceituosa? O mesmo posso dizer a respeito do travesti, do usuário de drogas, do morador de rua e da pessoa com transtorno psíquico, os quais, numa congregação cheia de famílias tradicionais, ainda são tratados como portadores de uma terrível lepra moral. Inegavelmente encontramo-nos ainda bem distantes de ser a grande mãe acolhedora dos excluídos por faltar mais amor e visão entre o povo de Deus.

Penso que, nesse tempo caótico que hoje vivemos, a efetiva proteção do ser humano talvez só poderá ser encontrada no desenvolvimento pleno da fraternidade em que as congregações seriam os pontos de encontro de uma família super-estendida. Por isso defendo que o maior foco das nossas pregações no mês de maio deve estar no fortalecimento da comunidade afim de que criemos uma rede amorosa tanto no nosso bairro quanto ao redor do mundo, independente de denominações institucionais ou de doutrinas. E, quanto a isso, a Igreja do século XXI precisa de uma urgente reconciliação.

Viva a grandiosa família de Deus! E que a Igreja, em sua bela diversidade, seja tão rica em formas como as estrelas do céu e a areia do mar!

Uma excelente semana a todos com Jesus!


OBS: A ilustração acima trata-se da célebre obra A Família da pintora e desenhista brasileira Tarsila do Amaral (1886-1973). Extraí a imagem de http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/tarsila-do-amaral/a-familia.php

Comentários

Anônimo disse…
Querido, Lulu Santos já dizia e cantava, bem depois de Marx: "Nada do que for será, de novo do jeito que já foi um dia, tudo passa / tudo sempre passará". Inexorável a mutação...
Eduardo Medeiros disse…
Rodrigo, eu concordo com tudo o que você expôs em seu texto. Inclusive, esse lado rebelde de Jesus em relação à sua família, não é muito tocado pelos pregadores, mas a verdade é que Jesus não deixou de relativizar nem o que para o judaísmo é tão caro: a família. Por que parece que muitos vivem com um discurso ideal na boca sem conseguir analisar que a nossa realidade atual é bem diferente. Não dá para ter o mesmo tipo de família do início do século 20 neste nosso século 21, com seus novos problemas, novos desafios. O que deve ficar destacado, é a importância que a família sempre terá, não importando muito suas diversificações.
Levi B. Santos disse…
Quem poderá saber, enfim, o futuro da família, agora, despojada da antiga e formal sacralidade? (rsrs)

Como "...no princípio era o DESEJO e o DESEJO se fez CARNE" , o anseio de que os filhos sejam cópias dos pais. permanece no inconsciente -, nostalgia de um passado idealizado.
Olá!

Eu nem chamaria as mudanças na família de "mutação", mas sim de transformações pelas quais passa a sociedade.

No entanto, embora "Nada do que for será, de novo do jeito que já foi um dia", as coisas podem se repetir de uma outra maneira. E, no futuro, a presença do pai e da mãe na formação educacional d filho poderá voltar a ser muito valorizada como indispensável para o bem estar de uma criança.

Mas agradeço por sua leitura e comentários ao texto.
Caro Eduardo,

Acho que as coisas devem ir acontecendo naturalmente.

Realmente não dá para impor o modelo de família de 100 anos atrás para a realidade atual. Por mais que eu valorize as figuras paterna e materna na formação educacional da criança, conforme respondi acima ao internauta que preferiu ficar no anonimato, não negaria a uma dupla de homossexuais a guarda de um menor pelo fato dos adotantes serem dois gays ou duas lésbicas, caso um dia venha a ser um juiz.

Ora, será que muitas duplas de homossexuais não cuidam melhor do que pais héteros?

E o que dizer dos avós? Pois, embora muitas crianças sejam super protegidas pelos pais de seus pais, há situações em que os genitores podem se tornar até prejudiciais aos filhos.

Ainda nos encontramos bem distantes do ideal da comunidade assumir seu dever de cuidado para com as crianças. Logo, deve-se admitir as novas formas de família que surgem.
Prezado Levi,

Muito boa a sua intervenção!

Como já andei respondendo acima, acredito que as figuras paterna e materna voltarão a ser bem valorizadas algum dia assim como a forma natural de reprodução não deve deixar de ser a principal. Talvez a humanidade mantenha o planejamento de natalidade como tem acontecido tanto no Ocidente como em vários países do Oriente também, mas, numa etapa de elevação da consciência os métodos científicos de inseminação serão evitados por razões éticas tendo em vista o bem estar do nascituro e da futura criança.

Quanto aos relacionamentos entre pais e filhos, acredito em poderosas mudanças. No lugar do autoritarismo, talvez venha o diálogo em que o pai será visto mais como um grande amigo. Alguém que, junto com nossa mãe, nos ajudou a entrar neste mundo e a dar os primeiros passos. Logo, eis que até o quinto mandamento da Bíblia, o honrar pai e mãe, tende a ser melhor interpretado como uma via de mãe dupla caracterizando-se pelo respeito mútuo.