No seu mais consagrado livro ― “TratadoTeológico-Político ―, Baruch de Espinosa, diz que as Escrituras Sagradas são
fruto da imaginação dos profetas, que entendiam a intenção humana como efeito
de um Espírito Divino. Antecipando-se a Freud, diz ele: “os direitos subjetivos
de Deus nada mais são que a soma dos direitos subjetivos do todos os indivíduos
(T.Teológico-Político – pág CVII – Editora Martins Fontes).
O prefácio ou introdução dessa
magistral obra, realizada por Diogo Pires Aurélio, consomem 137 das 560 páginas que
compõem o livro, do qual trago um trecho bastante emblemático em que o filósofo judeu de Amsterdam, por volta de 1674, discorreu sobre a “Igreja Cristã” do seu tempo:
“Inúmeras vezes fiquei espantado por
ver homens que se orgulham de professar a religião cristã, ou seja o amor, a
alegria, a paz, a continência e a lealdade para com todos, combaterem-se com tal
ferocidade e manifestarem cotidianamente uns para com os outros um ódio tão
exarcebado que se tornou mais fácil reconhecer a sua fé por estes do que por
aqueles sentimentos. De fato, há muito as coisas chegaram a um ponto tal que é
quase impossível saber se alguém é cristão, turco, judeu ou pagão, a não ser
pelo vestuário, pelo culto que pratica, por freqüentar esta ou aquela igreja,
ou finalmente, porque perfilha esta ou aquela opinião e costuma jurar pelas
palavras deste ou daquele mestre. Quanto ao resto, todos levam a mesma vida.
Procurando então a causa desse mal, concluí que se deve, sem sombra de dúvida a
se considerarem os cargos da Igreja como títulos de nobreza, os seus ofícios
como benefícios, e consistir a religião, para os vulgos, em cumular de honras
os pastores. Com efeito, assim que começou na Igreja esse abuso, logo se
apoderou dos piores homens um enorme desejo de exercerem os sagrados ofícios,
logo o amor de propagar a divina religião se transformou em sórdida avareza e
ambição; de tal maneira que o próprio templo degenerou em teatro em que não
mais se veneravam doutores da Igreja mas oradores, não ensinando senão coisas
novas e insólitas para deixarem o vulgo maravilhado. Daí surgirem grandes
contendas, invejas e ódio que nem o correr do tempo foi capaz de apagar. Não
admira, pois, que da antiga religião não ficasse nada a não ser o culto
externo(com que o vulgo mais parece adular a Deus que adorá-lo) e a fé esteja
reduzida a crendice e preconceitos. E que preconceitos, que de racionais
transformam os homens em irracionais, que lhes tolhem por completo o livre
exercício da razão e a capacidade de distinguir o verdadeiro do falso, parecendo
expressamente inventados para apagar a luz do entendimento. [...]Certamente
que, se eles tivessem uma centelha que fosse de luz divina não andariam tão cheios
de soberba idiota, nem perseguiriam com tanta animosidade os que não partilham
das suas opiniões; pelo contrário, sentiriam piedade deles, se é de fato, a
salvação alheia e não a própria fortuna que os preocupa. [...]Não há, com efeito, nada com que o vulgo pareça estar menos preocupado do que viver segundo os ensinamentos da Sagrada Escritura. É ver como andam quase todos fazendo passar por palavra de Deus as suas próprias invenções e não procuram outra coisa que não seja a pretexto da religião". [Baruch de Espinosa −Tratado
Teológico-Político ― pág 9, 10 e 114]
P.S.:
Plagiando o Rei bíblico, Salomão, pergunta-se:
“Passado esse tempo todo, há alguma coisa nova
debaixo do sol?”
Site da Imagem: wikipédia.org
Comentários
Demonstramos que o Espírito de Deus tanto pode significar em hebraico a mente como a intenção do homem. Por idêntico motivo a imaginação do profeta podia designar-se mente de Deus, já que por ela eram revelados os decretos divinos,e podi dizer-se que os profetas tinham a mente de Deus.
Para Espinosa, o homem em sua imaginação projeta seus anseios num ser supremo, onipotente e onisciente, que tudo governaria segundo os caprichos da sua vontade e segundo fins incompreensíveis para os humanos. Feuerback mais tarde lapidaria, ou tornaria esse conceito espinosiano mais compreensível no seu livro ― “A Essência do Cristianismo”
Em suma, Espinosa forneceu a Freud e a Lacan muito do seu pensamento, o qual, mais tarde embasaria a formulação dos conceitos de Superego e do Inconsciente.
Não tenho dúvidas de que o criticismo bíblico de Espinoza deixou importantes contribuições para a humanidade de modo que o filósofo não pode ser ignorado nem pela Igreja ou pelo judaísmo do qual veio a ser intolerantemente excomungado (suponho que se ele fosse católico essa intolerância teria sido maior naquela época). Porém, esse notável pensador do século XVII também cometeu seus erros. Daí eu discordar da afirmação de que "os direitos subjetivos de Deus nada mais são que a soma dos direitos subjetivos do todos os indivíduos".
Não vejo as Escrituras Sagradas como fruto "da imaginação" de seus autores. Entendo que a Bíblia foi escrita por homens profundamente espirituais os quais, buscando conhecer qual a vontade de Deus para o tempo em que viviam, traduziram as coisas celestiais em linguagem humana, o que, certamente, ficou condicionado aos limites também humanos da cultura e dos valores de suas mentes. Por óbvio que nenhum deles conseguiu se expressar com uma total perfeição, mas eu diria que foram erros incapazes de macular a essência da mensagem elevada que buscaram transmitir os seus contemporâneos, o que requer das gerações posteriores um cuidado redobrado na interpretação afim de não sairmos por aí compondo invencionices teológicas impróprias para a edificação espiritual das pessoas.
Deste modo, os "direitos de Deus" continuam sendo os direitos de Deus mas que só conseguimos compreender por meio de um raciocínio metafórico e limitado à nossa condição humana. Pois são valores impossíveis de serem definitivamente positivados em qualquer escrito, daí a necessidade de haver uma permanente atualização da tradição, conforme o contexto social no qual nos encontramos hoje, sem cortarmos os elos com o passado histórico.
"Porque os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos, os meus caminhos, diz o SENHOR, porque, assim como os céus são mais altos do que a terra, assim são os meus caminhos mais altos do que os vossos caminhos, e os meus pensamentos, mais altos do que os vossos pensamentos." (Isaías 55:8-9)
Agora respondendo à pergunta final do artigo, eu diria que, apesar das repetições dos erros, estamos também caminhando progressivamente. Uma mente tão brilhante como Espinoza, se vivesse nos dias de hoje, talvez não viesse a ser expulsa da maioria das sinagogas, mas ainda enfrentaria oposição dos religiosos mais ortodoxos. Talvez ele estivesse falando/escrevendo sobre outras coisas que feririam mais ainda os valores dos religiosos da atualidade ou fosse excomungado de outras maneiras como, p. ex., não ter o devido espaço para comunicar sua mensagem em determinados meios. Mas seja como for, eu diria que o mundo do século XXI está um pouco melhor em tolerância às diferenças do que há 300 anos atrás. Há uma evolução que é lenta e com recuos, mas que prossegue numa espiral dialética.
Esse trecho bíblico, Rodrigo, reforça ou realça ainda mais os conceitos de Freud.
Freud traduziria esse versículo, provavelmente dizendo::
Porque os meus desejos não são o que você racionaliza ―, diz a esfera INCONSCIENTE do indivíduo.
Em psicanálise, esse fenômeno tem o mesmo pano de fundo, quando é traduzido em termos científicos: Ora, se o INCONSCIENTE é autônomo, há ou não há uma relação íntima com os pressupostos religiosos, que diz que há um “Deus” que rege o humano?
Não foi à toa que, Freud chegou a admitir o Superego, como fator primordial no conteúdo do INCONSCIENTE, a influenciar em nossas racionalizações do dia a dia.
A experiência religiosa caracteriza-se por uma submissão a um poder superior Na psicanálise esse “poder superior” é denominada de “Superego” que tem sua matriz no âmbito do Inconsciente, ou seja, há uma “imago-paterna” a influir em nossas ações, que a instância - consciência desconhece.
Essa imago foi sedimentada em nossa tenra iknfância. Ademais, é bom frisar que fatos que ocorreram em nossos primeiros meses de vida e que não temos deles lembrança, continuam, hoje, determinando ou influenciando a ser o que somos.