Conceito de Expiação Posto em Cheque


Conceito de expiação posto em cheque

Carl G. Jung, em seu livro “Resposta a Jó”, alude duas teorias medievais em relação à expiação.  

Segundo Jung, o conceito tradicional da obra de redenção corresponde a um modo de pensar unilateral, quer o consideramos como puramente humano ou desejado por Deus. Existe um outro ponto de vista segundo o qual a obra da reconciliação não é o pagamento de uma dívida, mas a reparação de uma injustiça divina cometida contra o homem. Abelardo, teólogo cristão do século XI tinha pensamento parecido.

Esta concepção, prossegue Jung, parece-me corresponder melhor às verdadeiras desproporções. O cordeiro pode turvar a água de que serve o lobo, mas não pode causar nenhum outro dano a este último. Assim, a criatura pode decepcionar o criador, mas dificilmente será capaz de causar-lhe uma injustiça dolorosa. No entanto, está em poder do criador fazê-la contra sua criatura. Mas com isso não estamos cometendo uma injustiça contra a divindade.

Muito pior do que isso seria considerar que a única maneira possível de aplacar a ira do Pai tenha sido a de que este submetesse o Filho ao martírio da cruz até a morte. (modelo de expiação proposta por Anselmo, que mais tarde recebeu alguns retoques de Calvino e que passou a ser chamada de expiação pela substituição penal) Que Deus seria este que preferisse imolar o próprio filho a perdoar com magnanimidade as suas criaturas, mal aconselhadas e desencaminhadas por Satanás?

Que pretenderia demonstrar com este sacrifício cruel e arcaico do Filho? Porventura seu amor? Já que sabemos, que Javé tem a tendência de empregar meios, tais como a morte violenta do filho ou do primogênito, como teste, ou para impor sua vontade, embora sua onisciência e onipotência não tenham necessidade de procedimentos assim cruéis, além de dar, com isto, um péssimo exemplo aos poderosos.

Rubem Alves, outro crítico feroz ao modelo vigente, é ainda mais categórico quanto à sua insatisfação quando diz: A teologia cristã ortodoxa, católica e protestante, excetuada a dos místicos e hereges, é uma descrição dos complicados mecanismos inventados por Deus para salvar alguns do inferno, sendo o mais extraordinário desses mecanismos o ato de um Pai implacável que, incapaz de simplesmente perdoar gratuitamente (como todo pai humano que ama sabe fazer), mata o seu próprio Filho na cruz para satisfazer o equilíbrio de sua contabilidade cósmica. É claro que quem imaginou isso nunca foi pai. Na ordem do amor, são sempre os pais que morrem para que o filho viva.


Concluímos assim que, apesar de todo aparato com que a tradição construiu esse edifício soteriológico, existem lacunas que uma vez preenchidas podem revelar sua fragilidade e levá-lo a ruína. 

Donizete

Comentários

Levi B. Santos disse…
Um Bom texto para iniciar 2014. Parabéns, Doni


Na verdade o drama divino “Javé- Jesus” é o drama entre a Figura imaginária do Pai e do Filho em nós, humanos.
Há divisão ou há paradoxos na “Imago- Deus” (e não poderia ser o contrário) por que ela existe em todo ser humano. E isto é o que caracteriza a condição humana.

O Livro de Jó é realmente fantástico, desde que tratamos o seu relato como linguagem simbólica. Assim escreveu, Aniela Jafé, sobre Jó, no seu livro “O Mito do Significado”: É em linguagem simbólica que Jung fala da esperança de encontrar em Deus um ajudante e um advogado contra Deus. É em linguagem simbólica que Jung descreve a “vontade de fazer de modo diferente” como a “vontade de Deus”, e o Deus de Jó como bom e mau.

A “ambivalência da imagem de Deus” significa o “bárbaro” e o “infantil” que foi sedimentada durante a nossa formação bio-psíquica.
Precisamos entender a ambivalência que, por exemplo, no crente, é expressa pela forma: “Amar a Deus” e também “temor ao Mesmo”. Essa história de “amor” e “ódio” começou lá na nossa gênese. Em criança não nos damos conta de que amamos o nosso pai, mas também o odiamos e desejamos matá-lo.

Segundo Hegel , ...há uma mensagem atéia no cristianismo, por que é pelo cristianismo que se completa a destruição dos “deuses-todo-poderosos”. “Com efeito este ateísmo não é antiteísmo, mas o LUTO do Pai ideal, Senhor e Rei” ― diz o psicanalista e Teólogo Phillipe Julien, de linha Lacaniana

Aniela Jafé diz ainda algo emblemático sobre o livro - “Resposta a Jó”:

Quando o temor do deus do Velho Testamento reaparecer ao lado do amor prometido no Novo Testamento, não precisaremos mais nos horrorizar diante das atrocidades que a vida e o destino prepararam, e provavelmente prepararão, para nós.

Ainda volto, para ver o que Guiomar, Eduardo e o Rodrigo têm a dizer sobre o provocante tema trazido à baila por você, Donizete. (rsrs)
Olá, Donizete.

Como foi de ano novo?

Coloco aqui uma questão. E se Deus nunca esteve realmente irado contra a humanidade?

E se essa neura de culpa não foi uma criação nossa bem como as teologias de sacrifício existentes no mundo antigo, quer fosse entre os hebreus e outros povos (os pagãos) que também ofereciam seus animais aos deuses?

Assim, para aquela época, a apresentação de um Messias redentor que foi sacrificado em nosso lugar tornou-se uma mensagem suficiente para superar aquelas teologias sacrificiais e revelar aquilo que sempre esteve oculto para a complicada mente humana nos últimos milênios que é a bondade divina.

Admito, todavia, que os nossos atos ruins podem criar em nós terríveis sentimentos de culpa e de separação a ponto de perdermos a consciência da graça divina. Então, como consequência dos males que cometemos, passam os a desenvolver uma relação imperfeita com a Divindade, não conseguindo estar mais no Paraíso.

Enfim, pecar faz mal. E, numa visão mais atualizada da redenção, eu diria que Cristo Jesus veio salvar o homem da sua ignorância e alienação provocada pela vida errante. E isso o nosso Mestre faz de uma maneira graciosa, mostrando que nossas dívidas estão todas canceladas em relação a Deus e que elas nunca existiram exceto em nossa cabeça adoecida pelo pecado.

Um abraço a todos e um feliz 2014.
Realmente foi um bom tema, Levi, e fico feliz que a confraria não tenha caído no esquecimento. Recusei-me a escrever desta vez e preferi instigar outros a postarem como andei fazendo lá no grupo de debates do Facebook.

Sobre essa “ambivalência da imagem de Deus”, amigo, penso que se trate das nossas projeções humanas. O Eterno, a Inteligência Superior que rege o Universo, está bem acima delas. Por isso, não podemos nos esquecer que a Bíblia contém o registro da experiência de uma parcela da humanidade (dos judeus) em sua tentativa de compreender Deus.

Já postei minha opinião sobre o texto do Doni. Abraços.
Donizete disse…
Obrigado Levi e Rodrigo. Que 2014 seja um ano de grandes realizações para vocês.

O homem, na sua concepção de Deus, tem algumas alternativas dependendo da cultura ou da escola teológica na qual ele está situado

Uma delas é aceitar a ideia de um Deus ambivalente, que na opinião de Jung era também bipolar, pois sofria alterações de humores sistematicamente. Que apesar de ter suas crises de ciúme, sempre se revelava como um Pai amoroso, desde que logicamente não abusassem da sua paciência. Pois quando sua indignação extrapolava os limites aceitáveis entrava em cena o Deus-juiz disposto a aplicar sua justa sentença. Seguindo a tradição religiosa dos cananeus, foi incorporado a fé javista o sistema sacrificial que tinha como objetivo contornar um problema do homem, que consistia em transferir sua culpa para um animal que era literalmente sacrificado em seu lugar. A teologia cristã tradicional assegura que o sacrifício de Jesus na cruz foi uma extensão daquele sistema, que por sua vez prefigurava a cruz.

Tradicionalmente a teologia cristã concebe o sacrifício de Jesus como tendo valor expiatório. As divergências de opiniões se limitam em saber qual foi o ponto culminante, alcance e efeito, e por isso veem o sacrifício de Jesus na cruz sob perspectivas diferentes. Orientais e ocidentais não comungam da mesma ideia de expiação. O fato é que, pelo menos uns dez modelos de expiação foram articulados por teólogos em diferentes eras. O papa Gregório, se não me falha a memória no século VII, criou a teoria do cristo como anzol para fisgar o diabo, teoria que muitos por absoluta falta de conhecimento, ainda a adota em seus sermões e canções, ignorando que se trata de um modelo ultrapassado e substituído à séculos.

Fiz menção no texto de outros dois modelos, por se tratar, pelo menos à nível de ocidente, os mais aceitáveis. Sendo esse que sofreu as críticas mais pesadas de Jung e liberais em geral, o de aceitação majoritária.

Mas como eu disse logo no início, toda essa controvérsia pode ser evitada. Todo esse aparato engenhosamente pensado e deliberado em concílios pode ser descartado. Uma concepção deísta é a chave! Rsrs
Donizete disse…
Rodrigo, Você disse: "E se Deus nunca esteve realmente irado contra a humanidade?"

Qual seria então o objetivo da morte de Jesus? Aí entra a teoria de Abelardo para responder; A expiação pela influência ou exemplo moral.

Mas e se acaso a morte de Jesus na cruz foi apenas um acidente de percurso? Sem nenhuma representação simbólica ou efetiva? Enfim, e se Jesus morreu como um revolucionário que morre por seus ideais apenas? Nada de substituição, nada de efeitos metafísicos?


Levi B. Santos disse…
A título de subsídio, Doni, trago aqui o que de forma simbólica e mítica, diz Jung sobre a Crucificação de Cristo (um dos componentes do arquétipo cristão):

A cruxificação representa a justaposição dos opostos. Trata-se da intersecção entre o humano e o divino (o ego e o si-mesmo). Por intermédio de Cristo crucificado entre dois ladrões, o homem alcançou pouco a pouco o conhecimento de sua própria sombra e de sua dualidade. Esta última foi antecipada pelo duplo sentido da serpente. Da mesma forma como a serpente representa a um só tempo o poder que cura e o poder que corrompe, assim também um dos ladrões se acha orientado para cima e o outro para baixo; e, desse modo a sombra significa também, de um lado, uma deplorável e condenável fragilidade e, de outro, uma sadia instintividade, bem como um requisito para a consciência superior.

A Cruz, como marca simbólica de proteção e separação aparece também no V.T. (Livro de Ezequiel 9:4) onde o profeta, instado pelo Senhor, faz a marca da cruz na testa dos justos, para protegê-los do castigo.

A cruz tem duas faculdades: a de suportar (Stauros - “Tomando da cruz, sigam-me”) e a de separar -Horos. Esta última, presente na citação mítica e psicológica ― “Não vim trazer-lhes a paz, mas a espada. (Mat. 10, 34)

FONTE:

[ O Arquétipo Cristão ― Um Comentário Junguiano sobre a Vida de Cristo ― de Edward E. Edinger ― Editora Cultrix (pag.101 à 107)]
Eduardo Medeiros disse…
Teologicamente falando,
o modelo tradicional de expiação apresenta alguns problemas. Primeiro que os evangelhos nada dizem sobre a morte de Jesus ser um sacrifício para que Deus possa perdoar a humanidade dos seus pecados.
Saulo foi quem construiu a teologia cristã da expiação, usando os modelos sacrificiais do AT; com isso, ele amarrou a história do AT com a culminação dessa "história da salvação" com Jesus sendo o cordeiro perfeito, o fim das expiações.
Teologicamente, funciona bem o pensamento paulino(no sentido de dar uma unidade à história da salvação), mas parece que a tradição de quem escreveu os evangelhos não tinham tal opinião. E aí fica a questão no ar: é bem provável que a compreensão sobre a vida de Jesus já no início do cristianismo tenha sido bem diversificada.
E diversificou tanto, que chegamos às concepções psicológicas de Jung, que eu reputo como "iluminadas" rss
Nobre Amigo Eduardo,

O que Jesus queria dizer com a sentença registrada no evangelho escrito por João, "da mesma forma que a serpente foi levantada no deserto, cabe ao Filho do homem ser levantado no madeiro"? E também qual a conexão da morte no madeiro, com a continuidade da sentença que diz "para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna"?

Eu estou longe de ter um conhecimento tão profundo quanto ao do amigo, e concordo que tenha sido Paulo o grande difusor deste tradicional modelo de expiação. Mas ao meu simples e modesto entender, ele só o fez, porque havia sim uma propagação desta ideia muito anterior a sua conversão. Este capítulo de João, o de número 3 se não me estiver atrofiado o cérebro, me leva a perceber que havia sim uma opinião respaldada neste modelo tradicional de expiação na escrita dos evangelhos.
Caro Doni,

Se nos evangelhos constam o convite de Jesus para quem quem quiser tornar-se seu discípulo tomar a cruz e segui-lo, significa ter sido a sua morte o caminho exemplar para a destruição do pecaminoso sistema. Um sacrifício que deve ser compreendido de uma maneira mais ampla e profunda também.

Historicamente pode até ter sido um "acidente de percurso" ou quem sabe Jesus nunca pretendeu que a teologia cristã viesse a significar sua vida da maneira como a Igreja acabou fazendo. Contudo, tenho também aprendido a curtir as teologias criadas e extrair delas um sentido prático para as nossas vidas. Tudo o que pudermos aproveitar será oportuno, sedo possível uma convivência até entre os pensamentos que pareçam opostos.

Um abraço.
Donizete disse…
Matheus. O evangelho de João foi uma das últimas obras a ser escrita. Muito possivelmente a última, já próximo do final do segundo século. Portanto, já bem "contaminada" pela ideia de morte expiatória.