Uma Belíndia ainda pouco melhorada

Da varanda de seu barraco, na Baixada Fluminense, Juninho tentava lavar o seu caneco através da goteira que caída do telhado. Chovia, mas a sua casa permanecia sem água. A companhia de águas e esgoto não tomava as providências necessárias para regularizar o abastecimento das residências da comunidade. Mesmo após três exibições do problema pelo telejornal que havia começado a acompanhar o caso há um ano.

"Dizem que aqui sempre foi desse jeito", comentou dona Maria, mãe de Juninho, a qual usava até água suja do rio para cozinhar e lavar as roupas das crianças enquanto o seu marido arrumava uns trocados vendendo picolés ilegalmente no trem da Supervia por apenas um real.

Seu Tião, o chefe da casa, andava desempregado fazia dois anos. Morava antes numa favela mais próxima do Centro da cidade do Rio de Janeiro mas, com a tal da "pacificação", teve que sair do morro porque os aluguéis aumentaram muito. Por causa disto, ele precisou sujeitar-se novamente à ditadura dos traficantes que não acabou, continuando a dormir todas as noites com o barulho de tiro.

- "Esta noite a PM matou o chefe do tráfico aqui na área. Cabeças vão rolar! Ora pra Jesus proteger meu filho", assim falou dona Isabel, vizinha do seu Tião e de dona Maria que buscava, com insistência, levar o casal para a sua igreja pentecostal e lamentava o fato do seu filho mais velho ter entrado nas drogas.

Antes de virar crente, ela tinha sido mãe solteira por três vezes. Agora que tinha deixado o mundão, já era também avó sem nem ao menos ter chegado aos 40. Sua filha Michele, com apenas 14 anos, cuidava de um bebê de seis meses cujo pai conheceu num baile funk. Juninho antes dizia que a bela adolescente com o corpão de mulher era sua namorada mas ela logo botou um parzinho de chifres na cabeça pretensiosa do moleque, após ter lhe dado falsas esperanças. "Quando você crescer eu me caso contigo", brincava a adolescente.

Juninho mal sabia o que era sexo, mas a sua boca pronunciava inúmeros palavrões. Repetia tudo o que os pais e os demais adultos diziam na comunidade. Até a dona Isabel soltava uns nomes feios uma vez ou outra quando acabava a água: "Essa CEDAE é uma eme..."

À tardinha, quando a chuva deu uma trégua e o sol apareceu, estavam todas as crianças brincando. Juninho observava as pipas no céu doido para aprender a empinar a sua e, de repente, passou um helicóptero sobrevoando o local. Todos pararam e viram o veículo aéreo pousando num campo de futebol perto da outra margem do rio. Para lá vieram várias viaturas da polícia, repórteres e um agente policial sem farda, num canto, dava notas altas de dinheiro a quem seria o novo chefe do tráfico para que ele não causasse problemas contra a ilustre personalidade que logo desembarcaria. A bandidagem poderia ficar tranquila que nada iria acontecer:

"Aqui não faremos nenhuma UPP! Vocês podem ficar vendendo o bagulho porque os gringos virão para a Copa sem saberem que este lugar existe. Nas eleições do ano que vem tem mais dinheiro. O governador só pede que coloquem pra fora daqui aquele líder comunitário chato. Hoje estamos aqui por causa da enchente da semana que saiu no jornal"

Naquele mesmo instante, um morador idoso olhava de sua janela para o helicóptero. Era seu Manoel, um dos mais habitantes da área e que estava ali desde quando a localidade ainda era zona rural e ele trabalhava nos antigos pomares de laranja. Vivia quieto no seu canto e assistia à degradação sócio-ambiental da Baixada. Nas décadas de 60 e 70, ajudou uns comunistas que lutavam contra a ditadura a se esconderem nas matas da Serra do Mar não muito distantes dali. Guardava muitas histórias para contar, mas sabia que precisava se conter e que aquela vizinhança nova não tinha consciência do passado.

A esta altura, Juninho já estava subindo numa árvore atacando as goiabas do velho e ele assim  advertiu:

- "Segure a carteira menino! Olha o ladrão!"

- "Pra que, seu Manoel? Mamãe diz que aqui na favela não tem assalto!"

- "Mas agora tem. É que o governador chegou..."

Comentários

O termo "Belíndia" foi inventado no ano de 1974 pelo economista Edmar Lisboa Bacha. em sua fábula de fundo ideológico O Rei da Belíndia, na qual argumentava que o regime militar estava criando um país dividido entre os que moravam em condições similares à Bélgica e aqueles que tinham o padrão de vida da Índia.
Levi B. Santos disse…
Para fraseando o Jesus dos evangelhos:


O nó ou problema é que os fariseus que criaram as UPP, são sepulcros caiados por fora e podres por dentro. (rsrs)
Querem fazer uma pacificação para inglês ver, mas o tiro está saindo pela culatra. Os protestos têm evidenciado como está o Rio de Janeiro hoje. O problema precisa ser enfrentado com confiança e maturidade. O atual governador perdeu credibilidade e não há um nome na política regional do RJ capaz de resgatar esse importante elo com o povo.
Levi B. Santos disse…
Rodrigão


Os traficantes dos morros, parecem ser mais astutos do que os de colarinho branco. (kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk)
Eduardo Medeiros disse…
Boa ilustração do que acorre na realidade, Rodrigo. Eu sou um defensor da "essência" do programa das UPPs. Mas como negar que o programa foi feito para dar segurança ao espaço da cidade mais visível para turistas (a Zona sul) e no entorno do Maracanã (Copa do Mundo.)

No bairro de Deodoro, onde fica a comunidade conhecida como "muquiço" onde o tráfico é problema antigo, também deve receber uma UPP pois o bairro vai ser sede de competições olímpicas.

O chefe da polícia, Beltrame, cansou de dizer que não basta UPP,pois junto com a pacificação, tem que vir também melhorias sociais do Estado.

Alguns serviços que não existiam antes começaram a ser feitos, como recolhimento do lixo; mas os moradores não gostaram muito de pagar água e luz que antes eram todos "gatos".

O programa é bom, mas está desvirtuado; Sérgio Cabral está perdido, sem credibilidade, e todo dia tem passeata na porta dele mandando ele "cair fora". com certeza não elegerá seu candidato - Pezão - vice-governador, e os candidatos que despontam no horizonte não possuem força moral nem política.

Estamos num ponto complicado aqui no Rio.
A questão está complicada, Edu. Não faz muito tempo, o BOPE andou fazendo umas operações em Sta. Cruz, mas a Zona Oeste continua carente de uma política de segurança mais firme e a Baixada mais ainda. É impossível instalarem UPPs em toda a cidade e, se forem ocupar a Maré, vai ser uma guerra. Com esses protestos e a ação de vândalos a situação fica ainda mais complicada. Muito triste ver o Rio e o meu país desse jeito. Todavia, a fé é o que ainda me faz acreditar em mudanças diante de um quadro tão negativo. Mais do que nunca é preciso construir o Reino de Deus nas comunidades e nos corações das pessoas.
Nobres Amigos Confrades,

Infelizmente o texto retrata a realidade que se encontra espalhada no Brasil nos mais variados níveis. Algo que não é privilégio somente das favelas cariocas, ou dos cidadãos que desfilam vaidades na cidade satélite. Fatos que ocorrem tanto nas grandes metrópoles com também nas pequenas cidades, fatos que ilustram os grandes ministérios, até as mais simples prefeituras e camâras de vereadores.

Mas em suma, tudo se resume a acordos. De tempo em tempo, alguém tem que ceder, a tempestade recolhe sua fúria e a falsa sensação de bonanza acaba por emitir pequenos lampejos de esperança. Quando alguém rompe, ou por conta quebra o tratado, a fúria da natureza destas operações demonstra sua força. Assim surgem os mais avassaladores comportamentos, onde quem sempre paga o pato, é o mais fraco. Como diz mesmo aquele ditado antigo???

"a corda sempre arrebenta para o lado mais fraco"

E assim, festivos e sorridentes, nos alegramos ao dito da bandeira,

"ordem e progresso".

Fraterno Abraço.
Prezado Matheus,

De fato, o problema se repete em diversas partes do país e do mundo como bem colocou. Trata-se da indiferença dos nossos governantes e políticos em geral.

A este respeito, vale a pena lembrar do profeta Amós, citado pelo papa Francisco no seu discurso de sábado no Teatro Municipal:

"Eles vendem o justo por dinheiro, o indigente, por um par de sandálias; esmagam a cabeça dos fracos no pó da terra e tornam a vida dos oprimidos impossível" (Am 2:6-7).

E assim asseverou o pontífice, palavra que significa "construtor de pontes":

"Os gritos por justiça continuam ainda hoje. Quem detém uma função de guia deve ter objetivos muito concretos, e buscar os meios específicos para consegui-los. Pode haver, porém, o perigo da desilusão, da amargura, da indiferença, quando as aspirações não se cumprem. A virtude dinâmica da esperança incentiva a ir sempre mais longe, a empregar todas as energias e capacidades a favor das pessoas para quem se trabalha, aceitando os resultados e criando condições para descobrir novos caminhos, dando-se mesmo sem ver resultados, mas mantendo viva a esperança. A liderança sabe escolher a mais justa entre as opções, após tê-las considerado, partindo da própria responsabilidade e do interesse pelo bem comum; esta é a forma para chegar ao centro dos males de uma sociedade e vencê-los com a ousadia de ações corajosas e livres. No exercício da nossa responsabilidade, sempre limitada, é importante abarcar o todo da realidade, observando, medindo, avaliando, para tomar decisões na hora presente, mas estendendo o olhar para o futuro, refletindo sobre as consequências de tais decisões. Quem atua responsavelmente, submete a própria ação aos direitos dos outros e ao juízo de Deus. Este sentido ético aparece, nos nossos dias, como um desafio histórico sem precedentes. Além da racionalidade científica e técnica, na atual situação, impõe-se o vínculo moral com uma responsabilidade social e profundamente solidária."

Não é difícil compreender as contradições da pseudo pacificação carioca quando faltam aos governantes o devido compromisso, mas se deixam anestesiar pelo sentimento da indiferença.

No seu informativo de hoje, comentando acerca do discurso do papa, o ex-prefeito da Cidade Maravilhosa, César Maia, assim refletiu lembrando-nos de François Mitterand, o qual, em documentários gravados que só foram ao ar depois de sua morte soube admitir:

"A política desenvolveu em mim o sentimento da Indiferença"

Completou então César em sua referência implícita a Sérgio Cabral a seguir em destaque:

"E esse é o maior de todos os pecados na política dos últimos anos. O que é o comportamento de Berlusconi senão a Indiferença? Ou de Dominique Strauss-Kahn? O que são esses fatos mostrados na política brasileira, em restaurantes luxuosos de Paris, em programas cercados de luxo e companhias endinheiradas, em jatinhos públicos ou privados, etc.? Corrupção? Pode ser. Mas pode não ser, quando se a entende como enriquecimento pessoal."