A Moral, a Culpa, o Esquecimento e outras coisas...

          

 
                                                                                                                                   Elídia
           Estava lendo a Genealogia da Moral, confesso, por obrigações acadêmicas, mas nunca os conceitos enraizados em mim, embora enfraquecidos pelo exercício do pensamento da diferença, foram tão contestados com a leitura do livro fininho do alemão...

           Um dos capítulos que trata o livro, é o da culpa versus esquecimento. De forma coerente e simples, Nietzsche despedaça alguns conceitos da moral implantada através dos sistemas religiosos, para que o homem se condicionasse através dos tempos, e produzisse através da culpa, o modo de civilização tal qual vemos instituído. A leitura  que sai do modo representacional clássico, é incrivelmente contemporânea apesar do tempo cronológico em que foi escrita.

           O problema da moral, para Nietzsche,  parece convergir em alguns momentos com a metapsicologia freudiana, pelo sentimento de culpa interiorizado no homem (o Édipo) e a memória da culpa desde um passado pré-histórico, avançando até a instituição da religião judaico-cristã (Genealogia da Moral). Em Nietzsche parece que se avança um pouco mais pois este aponta o 'esquecimento' como um caminho possivel para 'sublimar' esse fardo. 

Aqueles terríveis baluartes com que a organização estatal de protegia contra os velhos instintos de liberdade (...), acarretaram que todos aqueles instintos do homem selvagem, livre, errante,  se voltassem contra o homem mesmo. A hostilidade, a crueldade (...) - tudo isso voltado contra os possuidores de tais instintos: essa é a origem da má-consciência. O homem (...) foi o inventor da má-consciência.(Nietzsche)
Conhecemos, pois, duas origens do sentimento de culpa, aquela a partir da angústia perante a autoridade e a posterior, a partir da angústia perante o superego. A primeira constrange a renunciar às satisfações pulsionais, a outra compele, além disso, à punição, pois que não se pode ocultar do superego a permanência dos desejos proibidos. (Freud)
 Com efeito, segundo a interpretação de Freud, uma das pilastras do Cristianismo consiste justamente no reconhecimento da razão originária daquele embotado mal-estar que oprimia a consciência dos antigos povos do Mediterrâneo: sofremos porque matamos Deus-pai; por conseguinte, merecemos o sofrimento como punição.


A religião cristã apresenta-se, para Freud,  como a sintomatologia de uma neurose obsessiva da humanidade, que configura uma ilusão atenuante do sentimento de culpa, o que constitui uma das razões principais de sua eficácia histórico-mundial. (Oswaldo Giacoia Junior).

           O que poderia ser o 'esquecimento' como potência para minimizar os efeitos da culpa no homem? É apontado nos autores mencionados, uma espécie de 'segunda inocência', e lembrei de meus amigos aqui, pois o ateísmo é levemente mencionado nesta reflexão. Também o budismo, em uma alusão ao pensamento oriental que Nietzsche recorreu algumas vezes. Mas não seria uma especie de 'outro subterfúgio'? Lembrei do 'novo nascimento' bíblico... Percebi que a busca de uma criança emblemática é presente em todas essas formas de pensar. Li aqui um belo texto publicado pelo dr. Levi, um poema de Pessoa ( O guardador de rebanhos) - que inclusive usei em minha dissertação - que fala também de uma 'outra inocência' possivel. Das muita formas de pensar, talvez foi a mais tocante...


* Nietzsche como Psicólogo - Oswaldo Giacóia Junior




Comentários

Levi B. Santos disse…
É isso aí, Elídia, não vamos deixar isso aqui virar um deserto. (rsrs) Por enquanto, somos quatro: Você, Eduardo, Miranda, e Eu. (rsrs)

Interessante, Elídia, que seu texto postado coincidiu exatamente com o que estava lendo hoje à tarde.

O titulo do artigo era “Somos Culpados, Mas de Quê ?” ― do psicanalista e colunista da Folha de São Paulo – Contardo Calligaris, em que ele faz alusão a questão da culpa, dizendo que no mundo ocidental as pessoas se culpam mais do que é necessário; enxerga-se crimes onde não há.

Aí ele relata uma célebre constatação de Lacan em seu seminário sobre a “Ética da Psicanálise” (1960): “a de que a culpa mais relevante não é aquela que se sofre por ter desobedecido uma norma, mas sim aquela que sofremos ao ter desistido de agir como queríamos”. Diz ele: “ lamenta-se mais amargamente pelas ocasiões perdidas, do que o arrependimento pelas transgressões feitas. A longo prazo, as desistências de seguir o nosso desejo doe mais do que a culpa por ter transgredido uma norma ou doutrina tradicional”.

Como você deu a entender em seu texto:

“o cristianismo reforça o sentimento de culpa pela “grave transgressão” de se ter assassinado o Pai”.

Mas veja que paradoxo:

Hegel, vê no bojo do cristianismo uma mensagem ateia: quando diz que ...é através de Cristo que se completa a destruição dos deuses. Com Javé esvaziado do seu poder, o cristão (na comunidade de irmãos – sem a interferência do Pai) tendo agora como alicerce básico a fraternidade, deveria reger os seus desejos, e não ser mais um sujeito passivo cheio de sentimento de culpa e eternamente devedor.

Na prática, não é o que acontece, pois o “cristão” continua realizando sacrifícios a Javé, acho que por não entender que o que representa o cristianismo é precisamente a percepção de um Pai esvaziado de sua potência que deixou os irmãos-em-Cristo entregues às conseqüências felizes ou infelizes da liberdade e dos desejos humanos.
Gabriel Correia disse…
Bem se o assunto é culpa, quer culpa maior do que a de se viver alegremente em uma sociedade fundada sobre a covardia!?
O cristianismo reforça o sentimento de culpa do fiel na intenção de dominá-lo pelo medo. Prega seus fundamentos como uma sociedade que nunca errou, apenas praticou alguns atos de uma forma que não funcionou. Sua consciência está exumada de culpa. O infiel é o culpado. O Gabriel Correia tem razão.
Gabriel Correia disse…
Altamirando, na verdade não temos culpa de nada visto que não somos covardes, nosso mal estar vem é de não termos coragem.
Eduardo Medeiros disse…

Elídia, tanta conteúdo em um texto tão pequeno!!!

Levi citou o Contardo Calligaris sobre a "culpa desnecessária" - mas disto, inferimos, haver uma culpa necessária. A destruição da moral e do sentimento de culpa é um embuste; é atitude que se volta contra si mesmo.

"Matei e mataria de novo"
"Mas era só uma criança, você não sente culpa"?
"Não, senhor..."

Já ouviram esse diálogo de um repórter e de um assassino? Onde está a culpa necessária para sua barbárie? Talvez este caia na lista dos psicopatas que são psicopatas exatamente por não sentir culpa alguma do mal que faz, de não ter a capacidade de se colocar no lugar do outro.

Levi expôs muito bem qual é a essência da teologia cristã da culpa citando Hegel:

Com Javé esvaziado do seu poder, o cristão (na comunidade de irmãos – sem a interferência do Pai) tendo agora como alicerce básico a fraternidade, deveria reger os seus desejos...

Mas isso na prática cristã foi poucas vezes compreendida.


Eduardo Medeiros disse…
Salve, salve, Mirandinha, que bom vê-lo aqui; achei que tinha se perdido em suas andanças e pescarias!!
Gabriel,

Eu não sou cristão. A covardia e a preguiça de pensar não são virtudes de ateus.